segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Vistos e Favoritos 



Já viram Shouwa Genroku Rakugo? Uma série comovente, sobre o Rakugo, género japonês do contador de histórias solitário, que se ajoelha em palco com um único adereço: um leque! Uma história linda, sobre o amor e a amizade.

Um Episódio...VER+





Acabei de ver uma série de 26 episódios que me encantaram! O Anime chama-se Mushi-shi e tem um tema inicial fantástico:
Trata-se de um género de ficção:"slice of life", aventura e fantástico. A personagem principal, Ginco, o domador de mushi é quem confere unidade à série, que se centra em seres fantásticos, um género de vida elementar. Investiga, de terra em terra, fenómenos ou acontecimentos estranhos, relacionados com esses seres minúsculos, que frequentemente apresentam poderes sobrenaturais e são invisíveis para muitos dos humanos, apenas alguns, dotados de características especiais, os conseguem ver. Ginko consegue lidar com estas formas de vida, ajudando as pessoas que sofrem de problemas causados por eles.
Vale a pena ver!

A  primeira história

銀子さん – Ginko-san  

O Domador de Microbichos

Adaptado do original japonês Mushishi ou Mushi-shi (蟲師) uma série de manga criada por Yuki Urushibara e serializada na revista Afternoon, revista japonesa de mangas publicada pela Kodansha. Recebeu uma adaptação para anime pelo estúdio Artland.


Distantes, invulgares e misteriosos, muito diferentes da fauna e flora que conhecemos, estas criaturas estranhas têm infligido terror nos seres humanos desde tempos imemoriais e chamam-se...microbichos.
"Em certas alturas, num mês com duas luas cheias, pode nascer um ser humano com a predisposição para dar vida a plantas, coisas e animais... Mas esta pessoa esconde os seus poderes, porque receia ser amaldiçoada pelos deuses."

A taça verde jade

    Na densa da floresta, que respira o verde profundo da montanha, o vento sussurra entre as árvores, como quem chama, ou como quem grita: «Quem vem lá? Está aí alguém? Alguém vem aí!»
    Um estranho calcorreia os caminhos intrincados, desviando ramos que se atravessam na caminhada. As aves gritam e agitam-se nas alturas, sob as densas névoas dos cumes da montanha e aquém e além, um barulho familiar desperta a atenção do desconhecido. Cabelo branco e franja descaída, que apenas deixa ver um olho muito azul, calças de ganga e camisa de manga curta, calçado com sapatos de caminhada, o desconhecido carrega às costas uma grande caixa de madeira, presa aos ombros por duas correias de cabedal. Traz na boca um cigarro amortalhado e avança, convicto do rumo que pretende seguir. Chama-se Ginko e é um domador de microbichos. Investiga, de terra em terra, fenómenos ou acontecimentos estranhos, relacionados com esses seres minúsculos, que frequentemente apresentam poderes sobrenaturais e são invisíveis para muitos dos humanos, apenas alguns, dotados de características especiais, os conseguem ver. Ginko consegue lidar com estas formas de vida, ajudando as pessoas que sofrem de problemas causados por eles.
Numa clareira, perdida no meio da floresta, uma casa solitária surge num socalco, sem qualquer outra habitação para lhe fazer companhia. Tão longe quanto a vista possa alcançar, nenhum sinal de vida humana, apenas floresta…e verde. Dentro da casa, sentado no chão de madeira, um jovem desenha, com um pincel, alguns caracteres numa folha de papel, com a mão esquerda, a direita, apresenta um dedo envolvido numa ligadura, que protege um ferimento.
    - Afinal, tudo bem, não posso desenhar com a mão direita, desenho com a esquerda. Para mim, até é mais fácil, porque sempre fui canhoto.
   O jovem desenha o sol, árvores com borbotos a rebentar e um pássaro…que, de um momento para o outro, ganha vida e quer sair do papel onde foi desenhado.
    - Bolas! Já me tinha esquecido...os caracteres japoneses são baseados em desenhos, é por isso que se chamam pictogramas. Vou tentar esborratar o que desenhei...
O pincel cheio de tinta desliza sobre os desenhos, mas a tentativa não surte efeito e o pássaro começa a esvoaçar pela casa. Sobe até ao teto e o jovem tenta desesperadamente, mas em vão, apanhá-lo.
- Hei! Volta aqui, passarinho! - Grita o jovem, mas o pássaro passa pela porta, em direção à rua.
Enquanto isso, Ginko, o domador de microbichos, aproxima-se da casa do jovem, vê o passarinho, que esvoaça muito perto e apanha-o no ar com a mão, que fica suja de tinta. Inconsciente da presença do estranho, o jovem grita:
- Quem te deu permissão para ires para a rua? Volta aqui!
E aparece à porta, a correr, com um camaroeiro na mão, pronto para apanhar o bichinho, que entretanto, deixou de o ser, esmagado na mão do domador de microbichos.
- Viu-o? Pergunta o jovem a Guinko.
- Sim, com os meus próprios olhos. – Responde o estranho – Tu és o Leroi Shinra-Kun?
- Sou…
- Leste a carta que te escrevi?
- Ah! Então o senhor é o domador Ginko – San? Eu estava agora mesmo a responder à sua carta, recusando o seu pedido para me investigar.
O jovem serve uma bebida quente e enquanto ambos bebem, sentados de cócoras no chão, o jovem explica:
- Até agora, tenho recebido vários pedidos para fazerem pesquisas sobre este meu poder, mas recusei-os todos, tal como a minha avó me ordenou na hora da morte. Pediu-me que não divulgasse esta minha habilidade especial e que tentasse o mais possível não a usar. Como o senhor viu, acontece que sempre que eu desenho qualquer coisa, mesmo que sejam coisas que não existem, elas ganham vida. Mas a minha avó dizia que não estava certo um ser humano dar vida a uma criatura e que isso iria irritar os deuses e deusas, por isso, ela proibiu-me de usar a minha mão esquerda para desenhar. Pois, porque se eu desenhar com a minha mão direita, nada acontece, mas magoei um dedo da minha mão direita aqui há dias e foi assim que isto aconteceu.
- Certo! E esta foi mais uma das tuas criações fabulosas.
- Também fiquei surpreendido, embora até agora tenha visto muitas coisas estranhas a mexerem-se à minha volta.
- A sério? Como por exemplo?
- Por exemplo, um guarda-chuva, um coçador de costas...Mas eu não quero servir de cobaia de pesquisas!
- Pois... – Disse Ginko com um gesto de pesar. Ele esperava poder estudar o fenómeno que estava a acontecer.
- Mas também não o vou mandar embora neste momento. Deve ter sido difícil trilhar os caminhos das montanhas. Por favor, passe cá a noite e descontraia. Para ser sincero, já faz bastante tempo que não converso com ninguém, por isso, gostaria de saber o que é que se passa no mundo.
Numa pequena malga, o jovem serve uma bebida quente ao forasteiro.
- Beba! É vinho de frutos que eu próprio fiz. Costumo ter sempre algum guardado.
Ginko olha em volta e exclama:
- Ah, pois! Vives completamente só, neste local desabitado?
- Sim, desde a morte da minha avó há quatro anos... porque ela pediu-me que nunca saísse desta casa.
Ginko lança ao jovem o seu olhar penetrante e pensa: «Compreendo porquê. Se ele fosse viver numa aldeia e acidentalmente desse vida a uma criatura em frente de alguém, provavelmente não iriam permitir-lhe levar uma vida pacífica, tal como leva agora. Este seu poder vai muito além da compreensão humana.»
Ambos bebem a bebida quente em silêncio, envoltos pela atmosfera húmida da floresta. O jovem olha fixamente um ponto longínquo. Ginko fita-o, absorto em pensamentos.
- Parece-me que a tua avó era uma pessoa muito sábia.
- Sim, ela tomou sempre muito bem conta de mim.
O verde das plantas próximas brilhava à luz rarefeita do sol que penetrava pelos ramos frondosos. De súbito, o jovem pousou a mão que segurava a chávena no joelho e exclamou, estendendo a outra mão cheia de folhas repletas de desenhos:
- Olhe... o senhor pode dar uma vista de olhos nisto?
- Foste tu que desenhaste?
- Sim, quando estou a pensar, às vezes aparecem, do nada, coisas como estas.
Viam-se nas folhas desenhos de coisas estranhas: uns pareciam correntes, outros, colares de sementes, outros, tinham forma de anémonas-do-mar.
- Sempre me perguntei o que seriam estas coisas estranhas com padrões variados, mas em grande quantidade de cada padrão, que circulavam à minha volta ou dançavam à minha frente. Era engraçado olhar para elas, por isso fiz alguns desenhos e mostrei-os à avó, mas ela ficou muito aborrecida. «Não percebo porque é que estás sempre a ver estes fantasmas... É por causa desse poder assustador que tu tens... Esquece estes fantasmas! É terrível... Simplesmente terrível...» e a avó fazia-me festas na cara e dizia: «Pobre criança!» e não dizia mais nada e até morrer, nunca acreditou que eu pudesse realmente ver aquelas coisas. Às vezes, eu questionava-me se havia algo de errado com a minha pessoa, por conseguir ver estas coisas a flutuar à minha volta. A verdade é que não conseguíamos ambos ver as mesmas coisas.
O jovem olhava desconsoladamente para um desenho com duas figuras: uma parecia uma couve com seis patas, como se fosse uma galinha; outra parecia uma abóbora com um grande anel em redor, parecia uma abóbora voadora, às voltas, também com três patas, em forma de ramos.
Ginko observou os desenhos atentamente e exclamou:
- Ah! Isso é porque estas criaturas são todas a representação de microbichos.
- Microbichos?
- Sim, são seres diferentes dos insetos e dos répteis. Deixa-me tentar explicar. Olha para a minha mão. Imagina que estes quatro dedos representam a vida animal e o polegar representa as plantas, a vida vegetal. Os humanos são o dedo do meio, eles ficam situados na ponta do dedo, o lugar mais afastado do coração. Quanto mais desces em direção à palma da mão, mais baixa é forma de vida. À medida que te vais aproximando do pulso, os teus vasos sanguíneos, que alimentam a mão, combinam-se num só.
E o jovem olhava a mão de Ginko e via os vasos sanguíneos em forma de ramo, estreitando e convergindo num só para o pulso. Ginko continuou a explicar:
- Os fungos e os microrganismos estão nesta zona, onde é muito difícil distinguir entre planta e animal.
E Ginko deslizava com o dedo pelo pulso esquerdo, subindo pelo braço, dizendo:
- No entanto, ainda há vida para baixo deste ponto. Vai até à junção do braço com o antebraço, até ao ombro, desce pelo peito e a vida que encontras aqui, junto ao coração é chamada micro, é a essência da vida na sua forma mais básica e pura.
O jovem mirava Ginko com os seus grandes olhos negros assustados e pensativos enquanto aquele continuava a explicar:
- E porque estes seres estão tão próximos do coração, que é a fonte da vida, as suas formas e existências são ambíguas e algumas pessoas conseguem vê-los, outras, não.
Refletindo no que estava a ouvir, o jovem olhava para a sua mão, pensativo, até que exclamou:
- Pois! Alguns são transparentes, como fantasmas!
- Sim, alguns são aparições fantasmagóricas, mas são na verdade microbichos, que podem também assumir aparência humana. A tua avó, provavelmente, não conseguia vê-los.
O jovem olhou o domador de microbichos fixamente, durante algum tempo. A noite caía na floresta e a luz de uma lamparina iluminava os rostos, cujas sombras bailavam no chão.
- É difícil descrever uma experiência sensorial deste tipo, tal como é difícil descrever a alguém um objeto, se esse alguém nunca teve dele uma experiência sensorial. Do mesmo modo, é difícil descrever às pessoas o mundo dos microbichos, se elas nunca o viram.
O jovem suspirou profundamente e relembrou a sua conversa com a avó. «Mas avó, tu não imaginas como me sinto feliz, por poder ver estas criaturas estranhas no nosso mundo!»
O cansaço vence as personagens, que adormecem nos seus futons, deixando no chão as malgas da bebida. O jovem dorme profundamente, mas Ginko levanta-se para satisfazer necessidades fisiológicas e ilumina a escuridão com a lamparina, avançando pela casa, enquanto o chão de madeira range sob os seus passos. «Mas que casa tão desconexa, tão estranha e tão velha. Muito me surpreende que este jovem viva sozinho, num lugar destes.» De súbito, algo passa rapidamente na sombra e o domador de microbichos deita a mão ao bolso, de onde retira um tubo fino, articulado, que estica e se transforma numa vareta fluorescente.
- Hummm…bem me queria parecer que esta casa deve estar cheia de microbichos.
Avança devagar, iluminando a divisão com a lamparina. Dois olhos negros, amendoados, fitam-no no escuro. O domador sente uma presença, perscruta os espaços com o seu olho muito azul e fareja o ar com o nariz arrebitado, enquanto o cabelo branco brilha à luz da lamparina e o cigarro amortalhado e amarrotado pende dos seus lábios finos. Lá do alto, junto ao teto da sala, pairando no ar, uma figura humana envolta num kimono colorido exclama, numa voz profunda e rouca:
- Oooh! Tu tens um alfinete para apanhar microbichiiiiinhos…
O domador levanta a cabeça e observa a criatura que o fita com olhos castanhos amendoados. É uma figura feminina, jovem, envolta num kimono cor-de-laranja, salpicado de flores brancas e folhas verdes, com uma faixa larga a envolver a cintura estreita. Duas grandes abas laterais abrem-se até à cintura, como asas de borboleta, esvoaçando no ar.
- Vais apanhar um microbichinho com isso, para pores em exposição, caçador ignóbil? – Vocifera a personagem.
Ginko dá uma passa prolongada no cigarro amortalhado, como quem pensa no que há-de responder a seguir e solta uma baforada espessa, que sobe, em direcção à criatura.
- Ignóbil? – Pergunta em tom de ameaça – não admito que um microbichinho miserável me chame nomes! – E sopra mais uma baforada espessa, que sobe, grossa e espessa e envolve a criatura pela cintura, rodando e apertando, em movimentos circulares, apertando e rodando, espessa e grossa, tal como uma corda, a envolver o pescoço de um cavalo. A criatura geme, assustada:
- Ah!...O que é isto? Como é que o fumo de um cigarro pode fazer isto?
E o fumo começa a puxar a criatura para baixo, envolvendo-a cada vez mais, tolhendo-lhe os movimentos e pousando-a, finalmente, no chão de madeira.
- Este fumo é um microbicho, tal como tu! – Exclama o domador, com um risinho irónico, «Hum-hum-hum» iluminado pelo fumo translúcido – É giro, não é?
A criatura debate-se, dando murros infrutíferos no fumo e rodopiando em redor.
- Este fumo agarra-se aos seus congéneres microbichos e não os solta, até os trazer para junto de mim e depois vai-se embora. Foi muito bem treinado, para me ajudar a dominar-vos!
De rastos, descalça no chão de madeira, a criatura arqueja cansada, bufando e mirando Ginko com os olhos grandes, castanhos e amendoados. O seu peito sobe e desce, ao ritmo da respiração acelerada e de repente, uma peça de porcelana verde escorrega-lhe de junto ao coração, por entre as dobras do kimono, e cai no chão de madeira, com estrondo. Aflita, a criatura estende a mão para agarrar a metade perfeita de uma taça partida, de cor verde, como jade. Olhando fixamente para a metade verde da taça que brilhava à luz da lamparina, Ginko exclama:
- Uáu! É a metade perfeita de uma taça para servir saquê…mas que cor tão bonita! Costumavas beber saquê por ela, enquanto olhavas para a lua? – Pergunta o domador à criatura que, acaçapada no chão, o olha, de cabeça erguida.
- Cala-te! Dá-me cá isso já! Como te atreves a vir descaradamente a minha casa, sem seres convidado? Vai-te já embora! Rua!
Ginko mira a metade da taça que segura na mão, dizendo:
- Decerto que falas muito, para seres um simples microbicho…dizes que esta é a tua casa?
- Sim, é! – Responde a criatura nostalgicamente. O domador fica alguns momentos pensativo, até que fala de novo, enquanto o cigarro amortalhado abana na sua boca, ao ritmo das palavras:
- Ah! Já percebo. Tu foste em tempos um ser humano, mas agora és uma criatura com características de microbichinho. Não és um microbicho completo, por isso é que és tão fraquinha. E esta metade de taça verde…dá-me uma pista relativamente ao motivo pelo qual ficaste assim. E também me diz quem tu és. O teu nome é Renzu.
A criatura faz um esgar com a boca e continua a mirar o domador com os seus grandes olhos castanhos amendoados, sentada no chão, com o queixo apoiado nas mãos cruzadas. O domador prossegue:
- Fiz algumas pesquisas sobre o Leroi Shinra-Kun antes de vir para cá, por isso, tenho uma ideia de como voltar a juntar as duas metades da taça de saquê. Queres saber como, avó Renzu?
De pé, a criatura olha Ginko com ar de desafio, mas ouve-se uma voz, por detrás dela, a voz de Leroi, que pergunta assustado:
- A minha avó ainda está nesta casa?
A boca franzida, os olhos esbugalhados e o corpo a tremer, eram sinais evidentes do pânico que assaltava o jovem, que entretanto se senta diante do domador, lado a lado com a criatura, mas sem a conseguir ver.
- Sim, está, responde Ginko, mas não na sua forma humana, é claro. A tua avó está no limbo, entre a sua forma humana e a de um microbichinho.
- O que é que isso quer dizer? – Questiona o jovem a tremer.
Ginko solta outra baforada do seu cigarro amortalhado, respondendo:
- Há um fenómeno chamado “O Banquete dos Microbichos”, que acontece na região onde eles adotam uma forma humana e trazem convidados forçados para o seu banquete.
O jovem imagina uma enorme floresta, com abundante vegetação de um verde reluzente, onde formas translúcidas e fantasmagóricas flutuam por entre os troncos.
- …É lá, nesse local, que os humanos convidados se servem de saquê numa taça e quando bebem esse saquê, perdem as suas características de seres vivos. Por outras palavras, tornam-se habitantes do outro mundo.
- Então a avó esteve num desses banquetes?
- Sim, mas o banquete foi interrompido a meio e assim, ela não se chegou a transformar completamente, mas quando regressou a casa, já não era a mesma coisa que era dantes. Deixou metade de si lá, no outro lado. A avó que tu conheceste era apenas metade de si própria, mas quando lhe davas a mão neste mundo, a outra metade ficava a vigiar-vos.
O jovem olhou para o primeiro degrau da entrada, onde é costume deixar o calçado quando se entra em casa, porque naquela terra, ninguém entra em casa calçado e viu que estavam lá os seus chinelos, os sapatos do domador e outro par de chinelos, dos quais um estava direito no degrau, mas o outro estava caído de lado, para o chão. Um alinhado, outro tombado, duas metades, uma direita, outra tombada, caída. Eram os chinelos da avó. Leroi suspirou:
- Não fazia a menor ideia…
- Como a tua avó não é totalmente microbicho, tu não a consegues ver, mas se usarmos o teu poder, ela poderá transformar-se num microbicho completo, embora que se o conseguirmos, ela não poderá regressar ao mundo dos vivos, porque uma das suas metades já faleceu. O que é que tu queres fazer?
- Isso é verdade? É verdade que se o conseguirmos, poderei voltar a ver o meu netinho outra vez? – Pergunta a criatura ansiosamente, com o rosto lavado em lágrimas.
- Leroi, a tua avó já me deu a sua resposta, não precisou de muito tempo para se decidir. E tu? Vais ajudá-la, não vais, Leroi Shinra-Kun?
O jovem continua a tremer e fecha os olhos, mas não consegue chorar. Sente a cabeça a andar à roda e o coração parece querer saltar-lhe pela boca. Fecha as mãos com força e olha pela janela, para a floresta verdejante. As árvores e as plantas, de um verde intenso, parecem segredar mistérios que Leroi Shinra-Kun escuta, emocionado. Vê a avó ainda jovem a ser puxada por microbichos, que a levam e lhe dão a beber saquê por uma taça verde jade, vê-a a beber uma bebida dourada e sente o mesmo pavor que ela sentiu. O jovem treme e chora, geme e curva-se sobre o ventre, como se uma dor profunda o atravessasse. Fica assim algum tempo, até que se recompõe. Levanta-se, pega num pincel e numa folha e pede a Ginko:
- Por favor, não olhes para os meus desenhos, quando eu estiver a desenhar.
Dirigem-se para a clareira em frente da casa, onde um biombo translúcido separa Leroi de Ginko, que dita instruções, para o jovem desenhar.
- Com a tua mão esquerda, desenha a taça de saquê que a tua avó recebeu dos mocrobichos, no banquete de que te falei há bocado.
- O quê? Mas não me disseste qual era a cor e a forma!
- Tudo bem, tenta desenhar o que conseguires imaginar.
- A minha imaginação…sussurra o jovem e começa a desenhar.
Curioso, Ginko limpa um ponto no biombo para conseguir espreitar, enquanto pensa, ardendo em curiosidade: «Quando me pedem para não olhar, é quando me apetece mais fazê-lo» e espreita pelo ponto aberto. Vê o pincel, a escorrer tinta verde, tão verde como jade, a aproximar-se da folha de papel.
- Eu imagino que é verde, tal como o verde desta floresta e deste local, rico e vibrante e é uma taça rasa e redonda.
- Bingo! – Grita Ginko.
Então a taça desenhada ergue-se e deixa uma sombra no papel, sombra essa que desliza, enquanto a taça se quebra em duas metades exatamente iguais. Uma das metades enrola-se e volatiza-se no ar e a outra metade fica caída no papel. De súbito, a metade que desaparecera cai de uma árvore para a mão de Ginko.
- Estás aí, avó? – Pergunta o jovem ansioso.
- Vou juntar as duas metades. – Informa o domador.
Quando as duas metades se juntam, a taça volta a ficar inteira e enche-se de um líquido dourado, ondulante.
- Agora bebe, Renzu! – Ordena o domador. Ela bebe, mas o jovem apenas vê o movimento da taça a tombar. Quando a bebida acaba, Leroi pode ver a avó em plenitude: muito jovem, quase da sua idade, o cabelo curto e negro, os olhos grandes, castanhos e amendoados, as mãos delicadas, segurando a taça verde jade, os pés descalços e o kimono cor-de-laranja, salpicado de flores brancas e folhas verdes, com uma faixa larga a apertar a cintura.
- Avó! – Exclama Leroi estupefacto – Tão jovem, tão bonita, que tu és…
Por seu lado, Renzu fita o neto emocionada…mas ao mesmo tempo desajeitada… «tão bonito que ele é!» Olham-se envergonhados e emocionados, até que Ginko intervém:
- Mas porque é que estão para aí embasbacados a olhar um para o outro? Estão com vergonha de quê?
- Ela é muito mais jovem do que quando eu a conheci… - responde o jovem, coçando a cabeça e soltando uma gargalhada nervosa.
- Toma, bebe também um bocadinho, este é um saquê para festejar.
Leroi pega na taça e olha para o líquido dourado, onde começa a ver imagens e formas de outro tempo e de outro lugar.
- São as memórias da avó! – Exclama o jovem estupefacto. E começa a visualizar a floresta onde a «jovem avó» caminhava apressada, para chegar a casa antes do pôr-do-sol e os microbichos, translúcidos e reluzentes, que a envolviam e lhe indicavam o caminho a seguir. Não conseguia sair da fila indiana onde se encontra presa, por isso avançava até uma clareira, onde se formou um círculo de microbichos e Renzu ficou sentada no centro, sobre uma roda branca. Uma taça de saquê circulou pelas figuras de aspeto humano, até que foi parar às mãos de Renzu.
- Agora bebe, Renzu! Este é um banquete em tua honra. – Disse uma voz atroadora. Renzu bebeu e achou a bebida muito fragrante, mas parou um pouco para pensar: «À medida que bebo, perco a capacidade de pensar.»
- Gostas? Esta é uma entidade viva chamada “Koki, o saquê da luz”.
Os fantasmas, sentados em cículo, observavam Renzu e de dentro do círculo jorrava uma luz intensa, que se expandia como um rio, pelo chão da floresta, iluminando a escuridão. A voz troante continuou a ouvir-se, como se viesse de dentro de um túnel, fazendo eco das palavras ditas.
- Criámos esta taça especialmente para ti. Tem estado a jorrar luz, desde que há vida neste mundo. É a luz que dá vida a todas as coisas e quando ela desaparece, as coisas secam e morrem. É a água da vida! Não provarás nada mais delicioso neste mundo. O motivo por que te tratamos tão bem é porque precisamos de um favor teu. Daqui a trinta anos, o teu neto nascerá com um poder especial, que pode mudar o mundo das criaturas vivas, em nosso proveito. Queremos que cuides muito bem dele, porque nos vai ser muito útil…
- O meu neto…
- Se concordares, dar-te-emos poderes especiais. Vá, bebe o saquê todo!
Renzu olhava para a taça, desconfiada e não queria beber, mas tremia de medo dos microbichos, que cerraram o círculo em seu redor e pareciam crescer, ameaçadores. De súbito, um corvo, o mensageiro dos céus, mergulhou das alturas e atacou com o bico uma das figuras do círculo, rasgando-lhe o capuz translúcido. Foi o suficiente para que o círculo se desfizesse e todos os microbichos desaparecessem. O corvo grasnava em tom de vitória e subia nas alturas e Renzu ficou sozinha, com a taça verde jade vazia na mão. Guardou-a dentro da dobra do kimono, junto ao coração e dirigiu-se para casa. Contudo, à medida que caminhava, sentia que algo se quebrava dentro de si e que a outra metade de si se afastava, juntamente com a metade da taça, noutra direcção da floresta.
Tudo isto foi o que Leroi observou, olhando para a superfície da taça e quando tudo termina, o jovem soluça, com o rosto molhado de lágrimas. «O que é que me está a acontecer?» - Pensa o rapazinho e não pára de chorar, pois sente as emoções de Renzu a fluir para si e percebe agora o quanto ela se preocupou e tentou protege-lo. Invadido de tristeza, olha o saquê, que continua a fluir pelo chão, deixando um rasto de luz.
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É de manhã. Para trás ficou uma noite de mistério e de acontecimentos mágicos e estranhos. As taças de vinho aquecido que Ginko e Leroi beberam na noite anterior continuam no chão e o jovem dorme, debruçado sobre a mesa. O domador sai de casa com a grande caixa de madeira às costas, que carrega por todo o lado e ouve a voz de Renzu:
- Já se vai embora? Vai desistir da pesquisa com Leroi Shinra-Kun?
Ele observa os pés da jovem, agora calçados com os chinelos que dantes estavam abandonados e observa o chão, que dantes estava seco e agora estava coberto de musgo verde e macio. A água da vida tornara verdejante todo o espaço em redor. Ginko puxa uma baforada do seu cigarro amortalhado, que apesar de fumado, nunca se extinguia e responde:
- Acho que sim! Ele já não precisa da minha ajuda, agora que a sua guardiã voltou à vida.
Renzu sorriu e convidou-o a voltar, num dos intervalos das suas pesquisas, porque Leroi se irá sentir só, naquele lugar solitário, mas o domador afirma:
- Não acho que seja necessário, porque de agora em diante, ele vai tê-la a si sempre ao seu lado.
Daí a um bocado, o jovem acorda estremunhado e procura o domador com o olhar. «Onde está Ginko?» pergunta ele à avó.
- Foi-se embora, o seu trabalho aqui terminou.
- Sem ao menos se despedir? Fizemos muito pouco para lhe agradecer…onde está a taça verde? Desapareceu…!
Lá longe, calcorreando os caminhos da floresta, Ginko olha satisfeito para a taça verde jade que guarda cuidadosamente entre os seus pertences preciosos. São relíquias de microbichos, que ele venderá a um amigo colecionador. Não costuma levar dinheiro pelo seu trabalho, mas sempre que pode, recolhe estas relíquias, para partilhar com o seu amigo colecionador. Perde-se no verde da floresta, fumando o seu cigarro amortalhado e amarrotado que nunca se extingue e naquelas paragens, nunca mais se ouviram rumores de um jovem com poderes para dar vida às pinturas e desenhos que fazia, sempre que usava a sua mão esquerda.

Eulália Nunes

A Beatriz e o Allyson já começaram a rabiscar! Lindos!

                                                                 Rabisco da Beatriz Rabisco do Allyson Cavalcanty